.




O politeísmo adequado da cristandade




  Texto colhido do livro de Richard Dawkins - DEUS UM DELÍRIO. 

Se quiser baixar o arquivo em pdf é só clicar na imagem que ele vai direto para seu computador. Uma ótima leitura. 
"Neste livro, Richard Dawkins, um dos intelectuais mais respeitados da atualidade, arma-se mais uma vez de seu texto sagaz, sarcástico e muitas vezes divertido para atacar sem piedade, mas com muito fundamento, o que considera um dos grandes equívocos da humanidade: a fé em qualquer entidade divina ou sobrenatural, seja Alá, seja o Deus católico, evangélico ou judeu". Tradução Fernanda Ravagnani - Companhia das Letras




 

POLITEÍSMO



O Deus do cristianismo é formado por três entidades configurando assim o politeismo
O Deus triúno do cristianismo: três em um.
Os historiadores da religião reconhecem uma progressão de animismos tribais primitivos, passando por politeísmos como os dos gregos, romanos e nórdicos, até os monoteísmos, corno o judaísmo e seus derivados, o cristianismo e o islã.

Não está claro por que a passagem do politeísmo para o monoteísmo deva ser encarada como um aperfeiçoamento progressivo evidente. Mas ela é amplamente aceita como tal — uma pressuposição que provocou Ibn Warraq (autor de Why I am not a Muslim [Por que não sou muçulmano]) a conjecturar sagazmente que o monoteísmo está por sua vez fadado a subtrair mais um deus e se transformar em ateísmo. A Catholic encyclopedia coloca o politeísmo e o ateísmo no mesmo nível de desimportância: "O ateísmo dogmático formal é uma autonegação e nunca obteve de fato a aprovação racional de um número considerável de homens. Assim como o politeísmo,

** "Christian children ali must be/ Mild, obedient, good as he." (N. T.) por mais facilmente que se apodere da imaginação popular, jamais satisfará a mente de um filósofo".
O chauvinismo monoteísta estava até bem recentemente encravado na lei de entidades beneficentes tanto da Inglaterra quanto da Escócia, a qual discriminava religiões politeístas para garantir o status de isenção de impostos ao mesmo tempo que facilitava a vida de entidades cujo objetivo fosse promover a religião monoteísta, liberando-as do rigoroso exame exigido, com bons motivos, das entidades beneficentes laicas. Minha idéia era convencer um integrante da respeitada comunidade hindu britânica a se manifestar e entrar com uma ação civil para pôr à prova essa discriminação esnobe contra o politeísmo.

Bem melhor, é claro, seria abandonar de vez a promoção da religião como base para o status de entidade beneficente. As vantagens dessa medida para a sociedade seriam enormes, especialmente nos Estados Unidos, onde as somas de dinheiro isento de impostos sugadas por igrejas, e que enchem ainda mais os bolsos dos televangelistas, atingem níveis que poderiam ser descritos sem remorsos como obscenos. Oral Roberts, que tem um nome bem adequado, disse uma vez a sua audiência que Deus o mataria se ele não lhe desse 8 milhões de dólares. É quase inacreditável, mas funcionou. Livres de impostos! Roberts continua com a corda toda, assim como a "Universidade Oral Roberts" de Tulsa, Oklahoma. Suas instalações, estimadas em 250 milhões de dólares, foram encomendadas pelo próprio Deus, com essas palavras: "Mobilize seus alunos para ouvir Minha voz, para ir aonde Minha luz é fraca, aonde Minha voz soa pequena, e Meu poder de cura não é conhecido, até nos limites mais extremos da Terra. O trabalho deles superará o seu, e com isso estarei satisfeito".
Pensando bem, meu litigante hindu imaginário provavelmente entraria no jogo do "Se não pode vencê-los, junte-se a eles". Seu politeísmo não é um politeísmo de verdade, mas um monoteísmo disfarçado. Há apenas um Deus — Brahma, o criador; Vishnu, o preservador; Shíva, o destruidor; as deusas Saraswati, Lakshmi e Parvati (mulheres de Brahma, Vishnu e Shiva); Ga-nesh, o deus-elefante, e as centenas de outros são apenas manifestações diferentes ou encarnações do mesmo Deus.

Os cristãos devem aprovar tal sofisma. Rios de tinta medieval, sem falar do sangue, foram gastos para explicar o "mistério" da Trindade, e para suprimir desvios como a heresia ariana. Ário de Alexandria, no século IV d. C., negou que Jesus fosse consubstancial (isto é, de mesma substância ou essência) com Deus. Que diabos isso queria dizer, você deve estar se perguntando. Substância? Que "substância"? O que exatamente se quer dizer com "essência"? "Muito pouco" parece a única resposta razoável. Mesmo assim, a controvérsia dividiu a cristandade ao meio por um século, e o imperador Constantino ordenou que todos os exemplares do livro de Ário fossem queimados. Dividir a cristandade brigando por minúcias — é o que a teologia sempre faz.

Temos um Deus em três partes, ou serão três Deuses em um? A Catholic encyclopedia esclarece a questão, numa obra-prima do raciocínio teológico:
Na unidade da Divindade há três Pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, sendo que essas Três Pessoas são distintas umas das outras. Assim, nas palavras do Credo de Atanásio: "o Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus, contudo não há três Deuses, mas um só Deus". 
Como se isso não estivesse suficientemente claro, a Encyclopedia cita o teólogo do século lll são Gregório, o Milagreiro:
Não há portanto nada que tenha sido criado, nada que tenha sido sujeitado a outro na Trindade: nem há nada que tenha sido acrescentado corno se uma vez não tivesse existido, mas entrado depois: portanto o Pai jamais esteve sem o Filho, nem o Filho sem o Espírito Santo: e essa mesma Trindade é imutável e inalterável para sempre. 
Quaisquer que tenham sido os milagres que deram a são Gregório seu apelido, não eram milagres de lucidez. Suas palavras carregam o traço obscurantista característico da teologia, que — diferentemente da ciência e da maioria dos outros ramos da sabedoria humana — não mudou em dezoito séculos. Thomas Jefferson, como tantas outras vezes, falou bem quando disse: "O ridículo é a única arma que pode ser usada contra proposições ininteligíveis. As ideias têm de ser definidas para que a razão possa agir sobre elas; e nenhum homem jamais teve uma ideia definida sobre a Trindade. Não passa do abracadabra dos charlatães que se autodenominam sacerdotes de Jesus".

A outra coisa que não posso deixar de ressaltar é a confiança pretensiosa com a qual os religiosos atribuem mínimos detalhes àquilo para o que nenhum deles tem nenhuma prova — nem poderia ter. Talvez seja exatamente o fato de que não há provas que sustentem as opiniões teológicas, para qualquer lado, que alimente a hostilidade draconiana característica em relação a quem tem uma opinião ligeiramente diferente, sobretudo, como ocorre, na área específica da Trindade.
Jefferson lançou o ridículo sobre a doutrina de que, nas palavras dele, "há três Deuses", em sua crítica ao calvinismo. Mas é principalmente o ramo católico romano da cristandade que empurra seu recorrente flerte com o politeísmo para a inflação descontrolada. A Trindade é (são?) acrescida de Maria, "Rainha do Céu", que só não é deusa no nome, mas que certamente coloca o próprio Deus em segundo lugar como alvo de preces. O panteão ainda é inchado por um exército de santos, cujo poder de intercessão faz com que eles sejam, se não semideuses, úteis em seus assuntos específicos. O Fórum da Comunidade Católica nos dá uma mão e lista 5.120 santos, junto com suas áreas de especialidade, que incluem dores abdominais, vítimas de abusos, anorexia, vendedores de armas, ferreiros, fraturas de ossos, técnicos de explosivos e problemas intestinais, para ficar só no comecinho da lista. E não podemos esquecer os Coros Angélicos, organizados em nove ordens: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e os Anjos simples, incluindo nossos melhores amigos, os sempre atentos Anjos da Guarda. O que me impressiona na mitologia católica é em parte seu kitsch de mau gosto, mas principalmente a tranquilidade com que essa gente vai criando os detalhes. É uma invenção descarada.

O papa João Paulo II criou mais santos que todos os seus antecessores de vários séculos juntos, e tinha uma afinidade especial com a Virgem Maria. Seus impulsos politeístas ficaram dramaticamente demonstrados em 1981, quando sofreu uma tentativa de assassinato em Roma e atribuiu sua sobrevivência à intervenção de Nossa Senhora de Fátima: "Uma mão materna guiou a bala". Não dá para não se perguntar por que ela não a guiou para que se desviasse de vez dele. Ou se pode questionar se a equipe de cirurgiões que o operou por seis horas não merece pelo menos uma parte do crédito; mas talvez as mãos deles também tenham sido maternalmente guiadas. 
Nossa Senhora de Fátima representada nesta imagem como uma menor  impúbere entre  8 a 12 anos cuja mão materna desviou a bala no abdome do Papa João Paulo II
O ponto relevante é que não foi só Nossa Senhora que, na opinião do papa, guiou a bala, mas especificamente Nossa Senhora de Fátima. Presume-se que Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Medjugorje, Nossa Senhora de Akita, Nossa Senhora de Zeitoun, Nossa Senhora de Garabandal e Nossa Senhora de Knock estavam ocupadas com outros afazeres naquela hora.
Como os gregos, os romanos e os vikings lidam com essas charadas politeológicas? Vênus era só outro nome para Afrodite ou elas eram duas deusas distintas do amor? Thor, com seu martelo, era uma manifestação de Wotan ou outro deus? Quem se importa? A vida é curta demais para nos preocuparmos com a distinção entre os muitos produtos da imaginação.

Como já tratei um pouco do politeísmo para evitar a acusação de negligência, não direi mais nada sobre ele. Em nome da concisão, vou me referir a todas as divindades, sejam poli ou monoteístas, como apenas "Deus". Também tenho consciência de que o Deus de Abraão é (para usar termos leves) agressivamente masculino, e esse fato aceitarei como convenção para o uso dos pronomes.

Teólogos mais sofisticados declaram que Deus não tem sexo, embora algumas teólogas feministas queiram compensar injustiças históricas designando-a mulher. Mas, afinal de contas, qual é a diferença entre uma mulher inexistente e um homem inexistente? Imagino que, no cruzamento irreal entre teologia e feminismo, a existência possa mesmo ser um atributo menos importante que o gênero.

.
Share on Google Plus

About Elisa Rocha

Livre pensadora ▃▃ uma aprendiz onde a existência é um eterno descobrir, artista plástica, amante da natureza, curiosa sobre a vida e seu sentido. Sou apaixonada pelas inovações da ciência, pelas maravilhas que o Cosmos nos revela e tenho esperanças no crescimento do homem enquanto ser afetivo e racional. ❤ Acredito que o melhor lugar do mundo está dentro do nosso próprio interior onde temos o poder de nos libertar ou aprisionar. ✔
    Blogger Comment
    Facebook Comment

0 Ponderações:

Postar um comentário

♡ ♡ ♡Obrigada pela visita.